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Morbidade severa global após QRT e Braquiterapia adaptativa guiada por imagem no câncer de colo uterino localmente avançado

O tratamento do câncer de colo uterino localmente avançado (LACC) tem como padrão-ouro a quimiorradioterapia (QRT) seguida de braquiterapia (BT). Há aproximadamente duas décadas, a BT evoluiu de uma técnica baseada em radiografia com prescrição de dose para o ponto A, para braquiterapia adaptativa guiada por imagem (IGABT). Esse avanço contribuiu para melhorar o controle local e a sobrevida. Demonstrado por meta-análise uma melhora significativa na sobrevida livre de doença em 3 anos de 67% para 79%, no controle local de 3 anos de 86% para 92% e aumento não significativo na sobrevida global em 3 anos de 72% para 79%. Para a IGABT especificamente, a sobrevida global em 5 anos é agora de aproximadamente 75%. consequentemente, uma grande parte de sobreviventes do câncer de colo uterino localmente avançado corre o risco de ser afetada por morbidade tardia.

Este relatório teve como objetivo fornecer uma visão abrangente dos eventos de morbidade grave observados no estudo EMBRACE-I, o primeiro estudo prospectivo de grande escala com foco em IGABT para LACC, no qual os endpoints primários foram controle local e morbidade tardia e assim compara-los com a literatura.

No período de 2008 a 2015, o estudo recrutou 1.416 pacientes. A morbidade foi avaliada (CTCAE v.3.0) a cada 3 meses no 1º ano, a cada 6 meses no 2º e 3º ano e anualmente a partir de então. Ao final, 1.251 pacientes tiveram acompanhamento disponível. Os eventos de morbidade (grau 3-5) foram definidos como o grau máximo durante o acompanhamento (taxas brutas de incidência) e estimativas atuariais em 3 e 5 anos. Para comparar com a literatura publicada sobre BT baseada em radiografia padrão, as pontuações CTCAE do estudo EMBRACE-I foram convertidas retrospectivamente em uma pontuação correspondente no sistema RTOG/EORTC.

No total, ocorreram 534 eventos graves em 270 pacientes; 429 eventos foram de grau 3 e 105 foram eventos de grau 4. As estimativas atuariais para eventos de grau ≥3 em 5 anos foram:

– Gastrointestinais (GI) de 8,5% (IC 95%: 6,9-10,6%),

– Geniturinários (GU) de 6,8% (IC 95%: 5,4- 8,6%),

– Vaginais de 5,7% (IC 95%: 4,3-7,6%),

– Fístulas de 3,2% (IC 95%: 2,2-4,5%),

A estimativa atuarial de 5 anos para eventos relacionados a órgãos (GI, GU, vaginal ou fístula) foi de 18,4% (95% CI: 16,0-21,2%). A estimativa atuarial de 5 anos ao agregar todos os desfechos Grau ≥3 (GI, GU, vaginal, fístulas e não GI/GU/vaginal) foi de 26,6% (IC 95%: 23,8-29,6%). Treze pacientes sofreram morte relacionada ao tratamento, 8 dos quais foram associados à morbidade gastrointestinal.

Os desfechos relacionados a órgãos mais frequentes foram estenose ureteral, estenose vaginal, estenose GI e fístulas. A maioria dos eventos relacionados a órgãos ocorreu em 3 anos. Os desfechos não relacionados a órgãos mais frequentes foram fadiga e insônia. As mortes relacionadas ao tratamento foram precedidas por pelo menos um evento grave de morbidade gastrointestinal em 8 de 13 pacientes (62%), incluindo perfuração intestinal (4 pacientes), necrose intestinal (4 pacientes), diarreia (4 pacientes) e sangramento gastrointestinal (3 pacientes). O risco atuarial cumulativo em 5 anos de morbidade de grau ≥3 ao agregar todos os endpoints aumentou com o aumento do estágio FIGO.

O nível de morbidade também é afetado por outros fatores como a evolução da EBRT de 3D-CRT para IMRT/VMAT que permite a economia de dose em OARs e uma subsequente redução na morbidade tardia, GI em particular. No estudo houve introdução parcial de IMRT/VMAT (41% dos pacientes) o que provavelmente contribuiu para os níveis mais baixos de morbidade tardia GI, uma vez que todos os pacientes nas publicações de BT baseadas em radiografia padrão foram tratados com 3D-CRT. Outros fatores relacionados ao tratamento incluem dose de prescrição de EBRT, campos eletivos estendidos, incluindo os linfonodos para-aórticos. Além disso, doses para intestino D2cm3, reto D2cm3 e ponto reto-vaginal ICRU foram fatores de risco para múltiplos desfechos. o D2cm3 da bexiga foi um fator de risco para fístulas, sangramento e cistite da bexiga.

Com base nos resultados descritos no estudo, foram feitas as seguintes sugestões: manter a dose prescrita de EBRT em 45 Gy, aplicar uma restrição de 65 Gy EQD2 (dose combinada de EBRT+BT) no ponto retovaginal ICRU e reto D2cm3 e aplicar uma restrição de 80 Gy EQD2 (dose combinada de EBRT+BT) para a bexiga D2cm3. A principal limitação do estudo EMBRACE-I é o desenho observacional e, portanto, a falta de um braço de comparação de BT baseado em radiografia padrão randomizado . No entanto, pode-se questionar se um estudo randomizado entre BT baseado em radiografia padrão e IGABT baseado em MRI teria sido ético com base nas indicações de eficácia aprimorada disponíveis antes do início do estudo.

Tradicionalmente, os efeitos tardios da radiação são considerados irreversíveis e, em geral, não tratáveis. No entanto, os achados do relatório mostram claramente que a ocorrência de eventos de morbidade grave não significa necessariamente persistência da gravidade. Diferentes desfechos exibiram diferentes trajetórias ao longo do tempo e, em muitos casos, a gravidade melhorou ou o sintoma foi resolvido. O manejo da morbidade tem o potencial de alterar a trajetória temporal de um sintoma, distorcendo a tendência de melhora/resolução. A maior tendência de persistência (≥50%) incluiu endpoints impulsionados por alterações fibróticas no tecido conjuntivo (estenose vaginal e fibrose pélvica), mas também endpoints em que a etiologia é mais multifatorial (fadiga). No outro extremo do espectro, o sangramento gastrointestinal resolveu ou melhorou em 95% dos pacientes, de acordo com os achados de sigmoidoscopias pós-radioterapia. Cistite, mucosite vaginal, ondas de calor e insônia também apresentaram alta tendência de resolução ou melhora de 63%, 67%, 69% e 69%, respectivamente.

A comparação da morbidade tardia entre IGABT e BT baseada em radiografia padrão é desafiadora, a maioria das publicações sobre BT baseada em radiografia são oriundas de estudos retrospectivos, o que pode resultar na subestimação da morbidade. Além disso, o uso de escalas de graduação de morbidade foi muito heterogêneo e, em alguns casos, a morbidade não foi graduada de acordo com uma escala bem definida. Assim sendo, apenas publicações sobre estudos prospectivos onde a morbidade foi classificada de acordo com CTCAE ou a escala de classificação RTOG/EORTC foram consideradas para comparação (4 publicações). Os endpoints não relacionados a órgãos, como fadiga, geralmente não foram relatados e, portanto, não puderam ser comparados.

Os resultados de morbidade tardia neste relatório mostraram-se favoráveis em relação a literatura publicada sobre BT baseada em radiografia padrão para morbidade gastrointestinal, morbidade vaginal e fístulas. No entanto, ao desdobrar todo o espectro de desfechos de morbidade avaliados prospectivamente, níveis substanciais de morbidade tardia grave ainda são revelados.

Cabe destacar, que em 2016 foi iniciado o estudo intervencional prospectivo EMBRACE-II com várias intervenções que visam reduzir a morbidade relacionada ao tratamento, incluindo introdução de restrições para OARs, uso de IMRT/VMAT e IGRT, o descalonamento em pacientes com LACC de baixo risco pode ser considerado com o objetivo de reduzir a morbidade tardia sem comprometer o controle local.

Disponível no link: https://doi.org/10.1016/j.ijrobp.2023.01.002

Dra. Mayza Furtado
Rádio-oncologista
Hospital Ophir Loyola e Hospital Saúde da Mulher – Belém/ PA

ECR

RT 2030