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CREMESP divulga nota técnica sobre remessa de prontuários para Delegados de Polícia.

Nota Técnica nº 001/2014 – DEJ
Ref.:    Lei 12.830/13
Remessa de prontuários para Delegados de Polícia

Ementa: Lei nº 12.830/13. Instrução de Inquérito Policial. Requisição por Delegado de Polícia de documentos protegidos pelo segredo médico e pelo direito à intimidade. Impossibilidade. Aplicação da Resolução CFM 1605/00. Necessidade de Lei específica regulamentando a matéria.

Fatos:
Trata-se de questão reiterada neste Departamento Jurídico a consulta acerca da remessa a autoridades de prontuários e documentos protegidos pelo segredo médico, principalmente após a edição da Lei Federal nº 12.830/13, que dispôs sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia.

Parecer:
1. Introdução.
A discussão envolvendo a remessa de cópia ou até mesmo dos originais de prontuários e documentos protegidos pelo sigilo profissional é bastante antiga e, frequentemente questionada em razão das alterações legislativas e interpretações acerca do direito conferido às autoridades de violarem esta proteção, sempre em nome do interesse público.

Atualmente, encontra-se em evidência a Lei Federal nº 12.830/13 que, ao dispor “sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia“, estabeleceu no § 2º do artigo 2º que “durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisiçãode perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.”

Dentre os documentos que podem interessar à apuração dos fatos, evidentemente estão aqueles protegidos pelo segredo profissional decorrentes da relação médico-paciente e, neste momento, coloca-se a dúvida quanto ao envio de tal documentação.
O sigilo das informações que são obtidas pelo médico na relação com seu paciente são protegidas desde os tempos da medicina hipocrática, Século V a.C, na qual o principal juramento, utilizado até os dias de hoje, assim dispôs: “Sobre aquilo que vir ou ouvir respeitante à vida dos doentes, no exercício da minha profissão ou fora dela, e que não convenha que seja divulgado, guardarei silêncio como um segredo religioso.”

No Brasil, o órgão maior regulamentador da Medicina, ao instituir o Código de Ética Médica, por força do artigo 5º, ‘d’ da Lei 3.268/57, atual Resolução nº 1.931/09, fez inserir um capítulo específico sobre “sigilo profissional” cujo principal teor encontra-se disciplinado no artigo 73, que assim dispõe:

“É vedado ao médico:
Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.
Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.”

Evidentemente que tal previsão, que decorre de atribuição legal do Conselho Federal de Medicina, encontra-se respalda pela Lei Maior brasileira que, por intermédio do inciso X, do artigo 5º, assim protege o direito à intimidade: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”

Portanto, é de se destacar que o direito ao segredo da relação médico-paciente encontra-se protegido pela Constituição Federal, sendo inviolável a intimidade e a vida privada em todos os seus aspectos e relações; não há flexibilização da Carta Magna quanto a tal aspecto.

Para que haja essa possível “quebra”, a própria Constituição previu a possibilidade, por exemplo, de lei ordinária regulamentar a “violação legal” do sigilo das comunicações, consoante disposto no inciso XII do artigo 5º (“é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.”), estando atualmente disciplinada a questão por intermédio da Lei Federal nº 9296/96.

Na hipótese do sigilo bancário, houve a edição da Lei Complementar nº 105/01, que determina como excepcional a quebra do sigilo, indicando um rol taxativo de situações passíveis (artigo 1º, § 4º.[1]); e mais, o artigo 3º da LC é claro ao dispor que “serão prestadas pelo Banco Central do Brasil, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelas instituições financeiras as informações ordenadas pelo Poder Judiciário, preservado o seu caráter sigiloso mediante acesso restrito às partes, que delas não poderão servir-se para fins estranhos à lide.

Como último exemplo, temos a inviolabilidade do domicílio, princípio constitucional (artigo 5º, XI) que impede a prisão por mandado judicial no período noturno, em respeito ao termo “asilo inviolável do indivíduo“, empregado pelo constituinte originário.

Após este breve intróito, resta evidente que são muitas as proteções constitucionais sobre os direitos individuais, corriqueiramente violados nos tempos que precederam a elaboração da Carta Magna.

2. Conceitos e discussão

O direito à intimidade decorrente da relação médico-paciente não pode sofrer um tratamento “próprio”, violado por simples ato policial administrativo.

O artigo 154 do Código Penal imputa como conduta típica, “Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja

[1]§ 4o A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes:
I – de terrorismo;
II – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado a sua produção;
IV – de extorsão mediante seqüestro;
V – contra o sistema financeiro nacional;
VI – contra a Administração Pública;
VII – contra a ordem tributária e a previdência social;
VIII – lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores;

revelação possa produzir dano a outrem:“, enquanto o artigo 207 do Código de Processo Penal vai além indicando que: “São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.

O Código Civil, em seu artigo 229, I, também dispõe que “Ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato: I. a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo.”

Significa dizer, portanto, que além da proteção constitucional à intimidade, o segredo profissional também encontra forte guarida na legislação infra, sendo que o profissional médico que revela fato de que teve conhecimento em decorrência da relação médico-paciente está sujeito a ser processado civil e criminalmente por eventuais danos causados a seu paciente, inclusive de ordem moral.

Tal revelação se efetiva de forma plena e, por consequência verifica-se o ato ilícito quando, por exemplo, o prontuário médico, documento que contém o registro das informações decorrentes da relação profissional, é exposto de forma indevida, nos autos de um inquérito policial que, muitas vezes, sequer exige a presença de tais documentos para sua conclusão.

A regra no caso da relação médico-paciente é a proteção das informações, de forma plena e absoluta; as exceções, as próprias normas legais e infralegais tratam de estabelecer: motivo justo (justa causa), dever legal, consentimento por escrito do paciente, tudo isso aliado a um indicativo de suma importância: a ausência de dano a terceiros e a motivação para a quebra.

O consentimento escrito do paciente não comporta grandes ilações, bastando para tanto a sua assinatura simples, dispensando-se inclusive reconhecimento de firma, destacando-se que, nesta hipótese, o médico não pode se negar a entregar os documentos médicos ante a autorização do próprio interessado na proteção do segredo.

O médico é o fiel depositário das informações que pertencem única e exclusivamente ao paciente, além do que jamais poder ser o delator de seu próprio assistido.
O dever legal decorre de obrigação explícita em texto de lei, como se verifica, por exemplo, no âmbito das doenças de notificação compulsória ou, ainda, quando caracterizada a situação descrita no artigo 66 da Lei das Contravenções Penais[2].

Quando não expressamente indicado em texto de lei, decorre do cumprimento de uma ordem judicial definitiva ou irrecorrível no momento.

O artigo 14 do Código de Processo Civil[3] estabelece a obrigação quanto ao cumprimento das decisões judiciais, sem que haja qualquer embaraço, sob pena de se caracterizar “ato atentatório ao exercício da jurisdição“.

Neste sentido, entendemos que o médico compelido judicialmente à quebra do sigilo da relação profissional deve fazê-lo, nos limites da ordem concedida, e sempre fazendo constar que se trata de documentação/depoimento protegido pelo segredo; se a decisão comportar recurso, deve sempre recorrer.

Estas são, pois, as hipóteses de “dever legal”.

Acerca do termo “motivo justo”, há muita discussão e poucas conclusões objetivas, pois tal termo comporta diversas interpretações,mas que sempre devem ser realizadas tendo como norte o direito à intimidade do paciente e a proteção ao segredo profissional.

[2] Art. 66. Deixar de comunicar à autoridade competente:
I – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal não dependa de representação;
II – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal:
[3] Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:
I – expor os fatos em juízo conforme a verdade;
II – proceder com lealdade e boa-fé;
III – não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento;
IV – não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito.
V – cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.
Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.

Sob nossa ótica e, s.m.j., o “motivo justo” deve ser avaliado e caracterizado pelo profissional médico e não por nenhuma autoridade; querer justificar a requisição de um prontuário médico apenas pelo fato de existir uma investigação criminal em andamento, seria atribuir a um terceiro não partícipe da relação médico-paciente a análise sobre a sua quebra excepcional, em situação não abarcada pelo dever legal, mas embasada apenas por um ato administrativo ou judicial e, quanto a este aspecto, destacamos o artigo 5º, II, da Constituição Federal que estabelece a máxima segundo a qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coias senão em virtude de lei.

O que indica o “motivo justo” é a consciência do profissional em situações extremas como, por exemplo, um paciente que é casado e soropositivo, mas não quer que seu cônjuge saiba, ou ainda, um paciente psiquiátrico que tem a convicção de irá matar alguém específico; nestas situações deve o médico ponderar a existência ou não de “justa causa” ou “motivo justo” para a quebra do sigilo, informando inclusive as autoridades se entender cabível.

Ou seja, quem define o “motivo justo”, num primeiro momento, é o médico.

3. Jurisprudência
Como visto, portanto, a Lei não prevê a quebra do sigilo profissional mas, ao contrário, a protegecomo regra; o interesse público atua como garantidor do segredo profissional e não como justificativa à sua quebra.

Nossos Tribunais possuem entendimento a respaldar a condição do médico, nesta posição de fiel guardião das informações íntimas que lhes são transmitidas por seus pacientes; o C. STJ, por intermédio de voto do Exmo. Ministro César Asfor Rocha, RMS 9.612, citado integralmente pela Exma. Ministra Eliana Calmo nos autos do ROMS 14.134, ressalta tal condição, cujos trechos da ementa assim indicam:

“PROCESSUAL CIVIL. SIGILO PROFISSIONAL RESGUARDADO.
O sigilo profissional é exigência fundamental da vida social que se deve ser respeitado como princípio de ordem pública, por isso mesmo que o Poder Judiciário não dispõe de força cogente para impor a sua revelação, salvo na hipótese de existir específica norma de lei formal autorizando a possibilidade de sua quebra, o que não se verifica na espécie.
O interesse público do sigilo profissional decorre do fato de se constituir em um elemento essencial à existência e à dignidade de certas categorias, e à necessidade de se tutelar a confiança nelas depositada, sem o que seria inviável o desempenho de suas funções, bem como por se revelar em uma exigência da vida e da paz social.”
(sem destaques no original).

O C. STF, nos autos da Reclamação 2040, ainda que de forma indireta, enfrentou a questão da entrega de prontuários à Polícia Federal, destacando-se o item 9 da Ementa:

“9. Mérito do pedido do Ministério Público Federal julgado, desde logo, e deferido, em parte, para autorização a realização do exame de DNA do filho da reclamante, com a utilização da placenta recolhida,sendo, entretanto, indeferida a súplica de entrega à Polícia Federal do ‘prontuário médico’ da reclamante.”

O Exmo. Desembargador Dr. Roberto Martins de Souza, no julgamento do Habeas Corpus nº 01093041.3/5-0000-000, oriundo do E. Tribunal de Justiça de São Paulo, destacou em seu voto condutor: “Nessa linha de raciocínio o paciente[4] não pode ser obrigado a entregar o prontuário médico, nem prestar informações médico-profissionais sigilosas de intervenções e atendimentos relativos à falecida (…) e, nem ser processado ou preso em razão da determinações judiciais de sujeição às penas do crime de desobediência…

O mesmo Tribunal, nos autos do Mandado de Segurança nº 327.306-3/2-00 e por intermédio de voto do Exmo. Desembargador Dr. Jarbas Mazzoni, concedeu a ordem em favor do Impetrante, médico, destacando os seguintes trechos do voto:

Resulta, pois, que não se vislumbra qualquer dever legal que obrigue o médico, dirigente ou funcionário de hospital a entregar informações que interessem diretamente ao paciente, afigurando-se abusiva a requisição desse teor endereçada à ora impetrante, a qual não pode ser compelida a revelá-las na forma preconizada, ao arrepio das normas jurídicas aplicáveis.

Frise-se, por outro lado, que a própria Santa Casa de (…) colocou à disposição do Juízo o prontuário médico da paciente para consulta por perito judicial devidamente compromissado (fls. 69); caminho fornecido pela Lei penal adjetiva para a efetivação de exame de corpo de delito (art. 159 do CPP); É o quantum satis para desonerar o nosocômio da exigência judicial.”

[4] Paciente é o termo utilizado para o “autor” do Habeas Corpus que, no caso, tratava-se de um médico.

Do voto condutor ainda se extrai o seguinte trecho, de extrema importância à elucidação do tema:

“Ora, a inviolabilidade do segredo profissional há que ser aferida sob o critério de intangibilidade dos direitos daquele que se expõe ao profissional, nele vislumbrando verdadeiro depositário de sua confiança, revelando-lhe fatos e circunstâncias que, provavelmente, jamais seriam externados, não fosse a certeza da preservação daqueles informes.”

4. Da Aplicabilidade da Lei 12.830/13 aos documentos médicos.
A Lei 12.830/13 não trouxe novidades à instrução do inquérito policial.

Segundo se verifica do artigo 6º do Código de Processo Penal, tão logo iniciada a investigação, a autoridade policial tem o dever de: “I – dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; II – apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; III – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; IV – ouvir o ofendido; V – ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por 2 (duas) testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura; VI – proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações; VII – determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias; VIII – ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes; IX – averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter.”

Significa afirmar que a investigação criminal, por intermédio do inquérito policial, disciplinada pelo Código de Processo Penal, é muito mais abrangente do que a estabelecida pela Lei 12.830/13, exceto pelo termo “requisição” utilizado no § 2º do artigo 2º.
Tal condição, s.m.j., não implica numa ampliação de poderes ao que já estava estabelecido pela Lei Processual Penal, mas apenas ratifica como sendo o Delegado de Polícia a autoridade investida dos poderes necessários à condução do inquérito policial; todavia, tal conclusão não é suficiente em hipótese alguma para lhe conferir os poderes necessários a requisitar documentos protegidos pelo sigilo profissional e mais, sem fundamentar a necessidade de tal juntada à investigação, na fase de inquérito.

Nelson Hungria, in “Comentários ao Código Penal”, pg. 261, defende, de forma brilhante, a proteção ao segredo profissional:

A vontade do segredo deve ser protegida, ainda quando corresponda a motivos subalternos ou vise a fins sensuráveis. Assim, o médico deve calar o pedido formulado pela cliente para que a faça abortar, do mesmo modo que o advogado deve silenciar o confessado propósito de fraude processual do seu constituinte, embora, num e noutro caso, devam os confidentes recusar sua aprovação ou entendam de desligar-se da relação profissional. Ainda, mesmo que o segredo verse sobre fato criminoso deve ser guardado. Entre dois interesses colidentes – o de assegurar a confiança geral dos confidentes necessários e o da repressão de um criminoso – a lei do Estado prefere resguardar o primeiro, por ser mais relevante. Por outras palavras: entre dois males – o da revelação das confidências necessárias (difundindo o receio em torno destas, com grave dano ao funcionamento da vida social) e a impunidade do autor de um crime – o Estado escolhe o último, que é o menor.

Querer interpretar a Lei nº 12.830/13 como uma “carta branca” conferida aos Delegados de Polícia no exercício de seu mister é impossível e pode trazer, na prática, graves violações a direitos individuais, inadmissível no Estado Democrático de Direito; seria a completa banalização do segredo profissional, que ficaria sob o crivo e juízo da autoridade policial.

Ademais, os chamados “documentos médicos” não possuem qualquer serventia à autoridade policial se desacompanhados de laudo pericial, posto que compostos e redigidos por palavreado técnico-médico, de difícil e, em alguns casos, até mesmo impossível, interpretação para quem não possui formação específica.

A hermenêutica extensiva da Lei não pode ser realizada quando se trata de ponderação de princípios em que, em uma das pontas, está o direito à intimidade; se assim for, pode, o Delegado de Polícia, com base na nova Lei, requisitar a entrega de documentos referentes à relação profissional entre advogado e cliente investigado criminalmente?

5. Da Normativa do Conselho Federal de Medicina
Restou demonstrado à saciedade que a Lei nº 12.830/13 não conferiu os poderes necessários ao Delegado de Polícia para, no curso do inquérito policial, requisitar a entrega de documentos médicos, protegidos tanto pelo segredo profissional quanto pelo direito à intimidade.

O Conselho Federal de Medicina, autarquia federal incumbida de regulamentar a atuação do médico em todo o território nacional, editou a Resolução nº 1.605/2000 que indica qual é o procedimento mais adequado para dirimir o conflito de interesses existente entre a persecutio criminis e o direito à intimidade. O artigo 4º da norma infralegal assim dispõe:

“Artigo 4º. Se na instrução de processo criminal for requisitada, por autoridade judiciária competente, a apresentação do conteúdo do prontuário ou da ficha médica, o médico disponibilizará os documentos ao perito nomeado pelo juiz, para que neles seja realizada perícia restrita aos fatos em questionamento.”

Este é o procedimento mais adequado a todas as hipóteses de análise de prontuário, inclusive para fins da lei nº 12.830/13, posto que ao Delegado de Polícia também é atribuído o poder necessário para a requisição de perícias.

O fato é que atribuir à Lei nº 12.830/13 uma magnitude que não possui é desestabilizar todo o sistema jurídico que, objetivamente, foi arquitetado pelo constituinte originário para coibir violações a direitos individuais maiores, como a intimidade, tão vilipendiado nos anos que antecederam a nossa Carta Republicana de 1988.

E mais, se a questão não for solucionada por intermédio da Resolução CFM 1605/00, reafirmada no artigo 89, § 1º do Código de Ética Médica, não há outra norma que disciplina a quebra do sigilo profissional médico e, portanto, os prontuários médicos são absolutamente invioláveis.

Conclusão – Opinio Juris:
Diante de todo o exposto, é forçoso concluir que a Lei nº 12.830/13 não conferiu aos Delegados de Polícia, no exercício de seu mister, poderes suficientes a requisitarem documentos protegidos pelo segredo médico e pelo direito à intimidade, cabendo à Lei regulamentar tais quebras, assim como no âmbito do sigilo fiscal, bancário e telefônico, aplicando-se ao caso a Resolução CFM 1605/00.

É o parecer, s.m.j.

São Paulo, 11 de fevereiro de 2014.

Osvaldo Pires Simonelli
OAB/SP 165.381
Chefe do Departamento Jurídico – CREMESP

 

ECR

RT 2030